IPUPIARA: Sr Eurico, uma história de vida!

 


 

O filho de pai incógnito

 

Por Arides Leite Santos*

 

                   O ilustre ipupiarense de quem se trata aqui empregou os melhores dias dos seus longos anos de vida trabalhando em empresas diversas na longínqua “Terra da Garoa”.

                   Falemos de sua origem. No sertão de outrora, lugar de pouca chuva e tempo duro de se aturar, Virgilina e Avivência vivenciaram algo em comum: tornaram-se mães de um filho de pai incógnito, que o gerou em Virgilina Maria da Conceição, mulher que o concebeu, que o carregara na barriga até lhe dar à luz do dia 26 de novembro de 1931. Ela o trouxe ao mundo, ele foi recebido numa casinha no povoado Lagoa de Prudente. Eram dias em que a fome grassava solta, vidas humanas feneciam à míngua do que comer. A sobrevivência ficava à mercê da sorte.

                   Mãe verdadeira, achando-se em circunstância assemelhada em certo sentido à daquela mãe da história bíblica, que preferiu entregar seu filho vivo para não o ver partido ao meio pela espada de Salomão, Virgilina Maria da Conceição preferiu entregar o seu aos cuidados de Avivência Leite Mendonça e Cícero Fernandes Mendonça, para não o ver morrer de fome.

                   Ao abrigo do novo lar, situado na sede da Vila que viria a se tornar na atual cidade de Ipupiara, o menino crescia no meio simples junto com outros coetâneos seus. Morando numa casa de frente para a Lagoa, saía a fazer estripulias pelos quatro cantos da Urbe.

                   Aos nove/dez anos, sentado na janela da Igreja Batista Evangélica da Vila de Ipupiara, ficava a ouvir pregações de missionários e pastores que de vez em quando apareciam, vindos de vários cantos do Estado da Bahia. Bom de memória, carrega a lembrança do sermão que ouvira do pastor Gutemberg Neris Guarabira, uma pregação convincente fundada na Parábola do Filho Pródigo que o ilustre pregador batista entregou aos ouvintes daquela congregação, organizada sob a supervisão da Igreja Batista de Barra do Rio Grande.

                   Eis que sua hora de sair de casa a procurar emprego pelo mundo afora veio chegando. Pacato, o jovem precisava de ir levado. Quem se habilita a levá-lo é Abdias Machado, marido de Olindina Leite Mendonça, sua irmã adotiva. O destino fica no interior do Estado de São Paulo.

                   Uma mata a ser derrubada para dar lugar a um cafezal os aguarda. Pirajuí, Estado de São Paulo: “é para lá que as malas batem!”. O jovem imigrante começa a trabalhar, desmatando, preparando o terreno para o plantio de café, visando a uma boa colheita. Não demorou para ser promovido a fiscal dos outros na lavoura de café. Fiscalizar e anotar o que os homens faziam e o que deixavam de fazer, esse é o seu novo encargo. Assim a jornada dele no interior paulista se cumpriu.

                   O destino agora fica na capital do Estado, cidade de São Paulo. Começa a trabalhar em uma usina de processamento de leite, no Brás, precisamente na rua Bresser. A usina Vigor, naquele tempo, acabou se tornando um ponto de acolhimento de imigrantes baianos, vindos sobretudo de Ipupiara e região. Nosso ilustre cidadão ipupiarense deixou a Vigor e ingressou no quadro de funcionários de uma fábrica de brinquedos, onde trabalhava fabricando canos de lata.

                   Também pediu conta do emprego na fábrica de brinquedos e foi trabalhar em uma fábrica de transformadores elétricos, no bairro do Cambuci. Agora seu ofício é fazer a bobinação de transformadores.

                   Saiu da fábrica de transformadores elétricos e foi trabalhar na indústria de eletrodomésticos Arno. Saiu também desta para trabalhar na empresa Real Transportes Aéreos, sob a gestão do Comandante Lineu Gomes.

                   Da Real Transportes Aéreos saiu para ingressar na TV Record, onde trabalhava como Cabo Men, Eletricista e Iluminador. Nesta época, a Record pertencia ao Sr. Paulo Machado de Carvalho e sua família. Ficava na Rua Meruna, no bairro Aeroporto.

                   O bom filho não se esquece da terra-mãe. Estimulado pelos ensinamentos da doutrina espírita kardecista, cultivando um forte sentimento de solidariedade humana, o obreiro ipupiarense juntou-se a outros conterrâneos e criaram em São Paulo a organização “Amigos de Ipupiara”. Por meio dessa entidade providenciavam o envio de auxílio material para ajudar os pobres de sua terra natal.

                   Sob a orientação da Sociedade “Amigos de Ipupiara” criada em São Paulo, foi criado em Ipupiara o Centro Espírita Viajores do Infinito, dirigido por Clementino Luiz de Souza, mais conhecido como “Souza” ou “Doutorzim”.

                   O Centro Espírita Viajores do Infinito recebia toda sorte de donativos, inclusive variados tipos de brinquedo: bonecas, bolas de futebol, carrinhos de plástico, bolas de gude etc. O Centro distribuía esses presentes para as crianças pobres da cidade, proporcionando momentos de extraordinária alegria, sempre em datas especiais, como Dia das Crianças, Natal etc.

                   Marcado pela sina de ser filho de pai incógnito, e uma vez homem feito, esse notável homem do bem decidiu que iria se casar, porém, com uma peculiar condição: a escolhida para ser sua mulher teria que já ter filhos, de modo que nessa condição, ele pudesse adotá-los e registrar como seus. Isso para que eles o chamassem de pai.

                   O filho de Virgilina e Avivência prometeu pagar a Deus com a cria dos filhos dele, expressando dessa forma sua gratidão pela vida que dele recebeu. Promessa feita, promessa paga: casou-se com Marlene Ferreira e tronou-se pai dos dois filhos dela, Fernando e José Garcia. O primeiro infelizmente veio a falecer precoce e tragicamente.

                   De volta a sua amada terra natal, ele fez um discurso por ocasião do desfile cívico de 7 de setembro de 1987, do qual permito-me destacar este trecho:

“Lembro que nascido este que lhes fala, ali na Lagoa de Prudente. Criado aqui à beira da lagoa, trago no meu coração, como todo jovem de Ipupiara, a Lagoa do Carranca. Vi, quantas vezes passar por ali, onde nós nos desenvolvemos fisicamente, as ‘comitivas’ que decidiam os destinos deste município. A partir da casa de vovó Felícia, de Antonio Lei Sobrinho (braço direito desta cidade), Vêncio Araújo, José [Zuza], Raul, Israel, João e Isaías Pereira Machado, e chegando ali aonde nos referimos, estavam aqueles corações que receberam esta pobra criatura: Cícero Fernandes Mendonça e Avivência Leite Mendonça, meus pais adotivos”.

                   Sua espiritualidade sempre aguçada passou por uma profunda metamorfose no final dos anos de 1990: tendo sido fiel seguidor da doutrina kardecista durante um longo período de sua vida, converteu-se à fé evangélica da corrente neopentecostal, integrando-se ao corpo de membros da Igreja Universal do Reino de Deus.

                   Na exuberância dos seus noventa e quatro anos bem vividos, hoje, em 2025, Eurico Mendonça experimenta a graça de saber que é amado como filho do Pai Celestial.

 

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*Arides Leite Santos nasceu em Ipupiara-Bahia. Estudou no Centro Educacional Cenecista de Ipupiara, sob a direção do talentoso professor Nenildo Andrade Leite, de saudosa memória. Migrou para Brasília em 1983. Formou-se em Ciências Contábeis e Direito (AEUDF). Fez MPA em Controle Externo (FGV-RJ). Pós-Graduação em Direito Público (UnB), Filosofia (UCAM), Teologia do Novo Testamento (Fabapar). É coautor de “Sociedade Democrática, Direito Público e Controle Externo” (org.: José Geraldo de Sousa Junior). Autor dos livros “História dos Batistas em Ipupiara: a obra das missionárias no sertão” (Scortecci, 2009), “Tomada de Contas Especial: o exercício do contraditório perante o Tribunal de Contas da União” (Scortecci, 2014), “Ipupiara e Ibipetum: história de lutas na Chapada Diamantina” (Scortecci, 2015).   

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